domingo, 13 de janeiro de 2013

Castelo da Rocha Negra


A casa conhecida como "Castelo da Rocha Negra", ou da "Ponta Negra" é  totalmente construída em alvenaria de pedra à vista e destaca-se na paisagem pelo seu porte altivo, imponente e misterioso que lhe valeu a alcunha de "castelo". Não é um castelo mas, apesar da sua planta em "L" hoje reduzida a um retângulo, lembra vagamente uma torre senhorial, muito fechada, com os vãos principais no terceiro piso (no lugar dos balcões medievais com mata-cães) e os remates superiores dos cunhais muito salientes (em vez dos elementos arquitetónicos de carácter defensivo).

Esta casa da família Lacerda, aos Cedros, salienta-se por diversos motivos. Tem três andares em vez dos dois pisos habituais das casas nobres, sendo o piso térreo destinado às lojas e os outros dois a habitação. A edificação remanescente esboça o braço arruinado de uma planta em "L" (que foi aproveitado no século XX para aí se construir um corpo, de um só piso, com uma nova cozinha) mas a cozinha primitiva era o grande compartimento do corpo principal por onde se entrava na habitação (a porta abre-se no tardoz junto à zona mais alta do terreno), onde nascia a escada de comunicação entre pisos e onde um terço da área é ocupado pela gigantesca lareira. O piso intermédio não tem vãos de qualquer espécie na fachada principal nem na empena direita, o que contribui para a aparência de torre acastelada e reforça o peso das consolas trabalhadas das janelas do piso superior.

O trabalho das cantarias das varandas e das cornijas salientes dos cunhais indicia uma construção (ou reconstrução) não anterior ao século XVII, muito provavelmente já do século XVIII. O "Castelo da Rocha Negra" é, assim, a ruína de uma casa resultante do desejo de afirmação de linhagem, eventualmente inspirado grosseira e tardiamente no modelo da torre medieval, ou que terá mesmo acompanhado, de modo algo rude, o movimento de recuperação dos sinais exteriores de poder e nobreza expresso em muitos solares portugueses de setecentos.
 
 


CASTELO DA ROCHA NEGRA
CEDROS • RUA DR. NEVES, AREIAS
EDIFÍCIO ISOLADO
ARQUITECTURA DOMÉSTICA
ÉPOCA DE CONSTRUÇÃO INICIAL: SÉC.XVII/SÉC.XVIII
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O Senhor do Castello da Rocha Negra
Bartolomeu Pereira de Lacerda habitava aquela casa torreada, a Cavaleiras da Rocha Negra, donde tirava o cognome – Senhor do Castelo da Rocha Negra. Daquele viso de monte descortinava roçando céu e horizonte Pico, São Jorge e Graciosa. E de tão gabada vista se vangloriava. Ali ermava, pois entre abegões e eguariços, vianda farta e pichel transbordante, cuidando da filha mimalheira e dos pingues senhorios.
Sabidas e suadas eram as suas riquezas, embora em seu castelo não vezasse estadear pompas. Na sala vaga, (1) nua de decorações e reduzida de mobiliário, andavam a granel o milho e o feijão. E na arrecadação, a par da espada, da lança e outras armas de cavaleiro, rodavam as enxadas e outros instrumentos de lavoura. Mas onde não luziam magnificências, luziam moedas de ouro amuadas em arca forte-tantas que, moeda adiante de moeda, poderia percorrer uma légua sempre em cima do seu dinheiro.
Testudo e duro de brios, esforçado e capaz de feitos atrevidos, não consentia menoscabo ou ataque à sua honra e fazenda, nem tao pouco a seus privilégios-que alguns em muita conta os tinha, maiormente aquele outorgando-lhe direito de acompanhar a procissão debaixo do pálio.
Corria o ano de 1514, célebre pela famosa embaixada que o rei venturoso enviara ao papa Leão X, com a qual deslumbrou o mundo. No primeiro Domingo do mês de Agosto celebrava-se a festa do orago, nos Cedros. De tarde desfilaria o préstito com a a solenidade costumada. Repicavam sinos e tocavam charamelas, estouravam morteiros e estalavam foguetes. A população exultava. É a hora do saimento e Bartolomeu de Lacerda habitualmente pontual, não comparece. Podia o pároco esperar ou mandar recado, mas, desafecto àquele senhor, de altivez, asselvajada e prerrogativas desmarcadas, fez romper a mancha.
Neste comenos, enroupado de gala, saltava na sela o senhor do Castelo da Rocha Negra que voa na estrada, direito à igreja. Inesperadamente dá de rosto como desfile, na revolta da praça.
- Tripas de Judas!...Ides-mas pagar, padre velhacaz!
Apeou-se de salto e investiu como uma bomba sob o pálio, estalando tamanha bofetada, que o padre solerte e desatento rolou, na esteira de verduras enrodilhado no pluvial.
Assombroso resultou o escândalo e, se a malta supersticiosa e indignada se conteve, foi por medo ao fidalgo, valente e assomadiço, cujos olhos pareciam brasas.
O desacato, porém, não era de ficar impune. No dia imediato seguia intimidação ao violento Bartolomeu para se apresentar na ouvidoria. Respondeu, rasgando-a na cara do meirinho e acrescentando:
-Só de el-rei recebo ordens! Largai daqui e larguei breve!
O ouvidor enviou então uma escolta a capturar o rebelde; contudo desistiram da empresa, de tal sorte se amata e a fortalecera o castelão da Rocha Negra.
Meses volvidos, a intimidação descia de el-rei para, sem tardança, comparecer na corregedoria da capital do reino – aquela com jurisdição em terras Açorianas.  
Desta vez obedece o altivo cavaleiro. Enfardela a trouxa, embarca e, vela enfunada, singra rumo de Lisboa. Aqui, apenas desembarcado, lhe intimaram encarceramento.
A janela da prisão olhava sobre um picadeiro onde só iam adestrar cavalos das coudelarias reais. Certa tarde trouxeram um, cor de amora e olhar de fogo, que os palafreneiros não conseguiam domar. Isto se passava atentamente observado pelo prisioneiro que declamou, impulsivo, lá dos varões de ferro:
- Obtende-me permissão para largar nesse corcel que, se nisto vierdes, palavra de fidalgo! Antes de baterem vésperas, vo-lo tornarei manso como mãe de poldros.  
- Feito!...Feito!-Lhe retorquiram.
Em menos de três credos acudia a permissão.
O recluso ingressa no picadeiro. De pulo cavalga o murzelo que em pronta defesa, se empina. O cavaleiro ataca-o de acicales, rudemente, e a defesa muda para impetuosos e rápidos galões. Inútil esforço! O calção está colado e o bicho toma o partido de arrancar, como uma bala.
Ainda não transcorrera o tempo marcado e já regressavam.
A montada espuma, um sopro fumega-lhe nas ventas e caminha a passo, completamente dominada.
Ergueu-se um brado de admiração, ecoante nos régios paços.
Bartolomeu de Lacerda foi chamado a el-rei que dest`arte lhe falou:
- Extremado cavaleiro  sois. Guardai o murzelo que dominastes mais esta espada damasquina. Com tais graças me praz brindar-vos! Ide-vos em hora boa.
O senhor do castelo da Rocha Negra voltou aos seus domínios, mais fero e sobranceiro do que nunca.
 
Manuel Da Câmara