A casa conhecida como "Castelo da
Rocha Negra", ou da "Ponta Negra" é totalmente construída em alvenaria de pedra à
vista e destaca-se na paisagem pelo seu porte altivo, imponente e misterioso
que lhe valeu a alcunha de "castelo". Não é um castelo mas, apesar da
sua planta em "L" hoje reduzida a um retângulo, lembra vagamente uma
torre senhorial, muito fechada, com os vãos principais no terceiro piso (no
lugar dos balcões medievais com mata-cães) e os remates superiores dos cunhais muito
salientes (em vez dos elementos arquitetónicos de carácter defensivo).
Esta casa da família Lacerda, aos Cedros,
salienta-se por diversos motivos. Tem três andares em vez dos dois pisos
habituais das casas nobres, sendo o piso térreo destinado às lojas e os outros
dois a habitação. A edificação remanescente esboça o braço arruinado de uma
planta em "L" (que foi aproveitado no século XX para aí se construir
um corpo, de um só piso, com uma nova cozinha) mas a cozinha primitiva era o
grande compartimento do corpo principal por onde se entrava na habitação (a
porta abre-se no tardoz junto à zona mais alta do terreno), onde nascia a
escada de comunicação entre pisos e onde um terço da área é ocupado pela
gigantesca lareira. O piso intermédio não tem vãos de qualquer espécie na
fachada principal nem na empena direita, o que contribui para a aparência de
torre acastelada e reforça o peso das consolas trabalhadas das janelas do piso
superior.
O trabalho das cantarias das varandas e das cornijas salientes dos cunhais
indicia uma construção (ou reconstrução) não anterior ao século XVII, muito
provavelmente já do século XVIII. O "Castelo da Rocha Negra" é,
assim, a ruína de uma casa resultante do desejo de afirmação de linhagem,
eventualmente inspirado grosseira e tardiamente no modelo da torre medieval,
ou que terá mesmo acompanhado, de modo algo rude, o movimento de recuperação
dos sinais exteriores de poder e nobreza expresso em muitos solares
portugueses de setecentos.
CASTELO DA ROCHA NEGRA
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CEDROS • RUA DR. NEVES, AREIAS
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EDIFÍCIO ISOLADO
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ARQUITECTURA DOMÉSTICA
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ÉPOCA DE CONSTRUÇÃO INICIAL: SÉC.XVII/SÉC.XVIII
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O
Senhor do Castello da Rocha Negra
Bartolomeu Pereira de
Lacerda habitava aquela casa torreada, a Cavaleiras da Rocha Negra, donde
tirava o cognome – Senhor do Castelo da Rocha Negra. Daquele viso de monte
descortinava roçando céu e horizonte Pico, São Jorge e Graciosa. E de tão
gabada vista se vangloriava. Ali ermava, pois entre abegões e eguariços, vianda
farta e pichel transbordante, cuidando da filha mimalheira e dos pingues
senhorios.
Sabidas e suadas eram as
suas riquezas, embora em seu castelo não vezasse estadear pompas. Na sala vaga,
(1) nua de decorações e reduzida de mobiliário, andavam a granel o milho e o
feijão. E na arrecadação, a par da espada, da lança e outras armas de
cavaleiro, rodavam as enxadas e outros instrumentos de lavoura. Mas onde não
luziam magnificências, luziam moedas de ouro amuadas em arca forte-tantas que,
moeda adiante de moeda, poderia percorrer uma légua sempre em cima do seu
dinheiro.
Testudo e duro de brios,
esforçado e capaz de feitos atrevidos, não consentia menoscabo ou ataque à sua
honra e fazenda, nem tao pouco a seus privilégios-que alguns em muita conta os
tinha, maiormente aquele outorgando-lhe direito de acompanhar a procissão
debaixo do pálio.
Corria o ano de 1514,
célebre pela famosa embaixada que o rei venturoso enviara ao papa Leão X, com a
qual deslumbrou o mundo. No primeiro Domingo do mês de Agosto celebrava-se a
festa do orago, nos Cedros. De tarde desfilaria o préstito com a a solenidade
costumada. Repicavam sinos e tocavam charamelas, estouravam morteiros e
estalavam foguetes. A população exultava. É a hora do saimento e Bartolomeu de
Lacerda habitualmente pontual, não comparece. Podia o pároco esperar ou mandar
recado, mas, desafecto àquele senhor, de altivez, asselvajada e prerrogativas
desmarcadas, fez romper a mancha.
Neste comenos, enroupado de
gala, saltava na sela o senhor do Castelo da Rocha Negra que voa na estrada,
direito à igreja. Inesperadamente dá de rosto como desfile, na revolta da
praça.
- Tripas de Judas!...Ides-mas
pagar, padre velhacaz!
Apeou-se de salto e investiu
como uma bomba sob o pálio, estalando tamanha bofetada, que o padre solerte e
desatento rolou, na esteira de verduras enrodilhado no pluvial.
Assombroso resultou o
escândalo e, se a malta supersticiosa e indignada se conteve, foi por medo ao
fidalgo, valente e assomadiço, cujos olhos pareciam brasas.
O desacato, porém, não era
de ficar impune. No dia imediato seguia intimidação ao violento Bartolomeu para
se apresentar na ouvidoria. Respondeu, rasgando-a na cara do meirinho e
acrescentando:
-Só de el-rei recebo ordens!
Largai daqui e larguei breve!
O ouvidor enviou então uma
escolta a capturar o rebelde; contudo desistiram da empresa, de tal sorte se
amata e a fortalecera o castelão da Rocha Negra.
Meses volvidos, a
intimidação descia de el-rei para, sem tardança, comparecer na corregedoria da
capital do reino – aquela com jurisdição em terras Açorianas.
Desta vez obedece o altivo
cavaleiro. Enfardela a trouxa, embarca e, vela enfunada, singra rumo de Lisboa.
Aqui, apenas desembarcado, lhe intimaram encarceramento.
A janela da prisão olhava
sobre um picadeiro onde só iam adestrar cavalos das coudelarias reais. Certa
tarde trouxeram um, cor de amora e olhar de fogo, que os palafreneiros não
conseguiam domar. Isto se passava atentamente observado pelo prisioneiro que
declamou, impulsivo, lá dos varões de ferro:
- Obtende-me permissão para
largar nesse corcel que, se nisto vierdes, palavra de fidalgo! Antes de baterem
vésperas, vo-lo tornarei manso como mãe de poldros.
- Feito!...Feito!-Lhe
retorquiram.
Em menos de três credos
acudia a permissão.
O recluso ingressa no
picadeiro. De pulo cavalga o murzelo que em pronta defesa, se empina. O
cavaleiro ataca-o de acicales, rudemente, e a defesa muda para impetuosos e
rápidos galões. Inútil esforço! O calção está colado e o bicho toma o partido
de arrancar, como uma bala.
Ainda não transcorrera o
tempo marcado e já regressavam.
A montada espuma, um sopro
fumega-lhe nas ventas e caminha a passo, completamente dominada.
Ergueu-se um brado de
admiração, ecoante nos régios paços.
Bartolomeu de Lacerda foi
chamado a el-rei que dest`arte lhe falou:
- Extremado cavaleiro sois. Guardai o murzelo que dominastes mais
esta espada damasquina. Com tais graças me praz brindar-vos! Ide-vos em hora
boa.
O senhor do castelo da Rocha
Negra voltou aos seus domínios, mais fero e sobranceiro do que nunca.
Manuel Da
Câmara